Tuesday, October 23, 2007

A CARTA DAS FINANÇAS

Receber uma carta das finanças é um momento solene na vida de um pacato cidadão que julga ter cumprido todos os seus deveres fiscais, de cidadania e outros. Só pode ser uma chatice Assim o melhor é não abrir logo a carta; aliás o dia da recepção não conta para qualquer prazo. Ponha-a num lugar bem à vista, mas guarde a abertura para o dia seguinte. Claro que a presença de uma provável ameaça causa angústia, mas o adiamento de um mal causa prazer e esta relação angústia/prazer pode determinar uma sensação agradavel a qual até pode levar a uma reorientação na sua vida sexual..




Assim, quando recebi uma carta das finanças, fiz tal e qual o que acima escrevi, excepto quanto `reorientação sexual, porque me dou muito bem com a minha heterosexualidade.




Quando abri a carta, no dia seguinte, dei com extensa e cuidada prosa que me informava que eu lhes devia uma importancia, cujo montante omitia,e porque como já me haviam notificado duas vezes ( o que era totalmente falso ) e eu, me remetera, de Conrado ao prudente silencio, estavam agora a dedicar-se à louvável tarefa de identificar os meus bens penhoráveis, finda a qual fariam mesmo a penhora ( considero-me com sorte em ter sido avisado, já que o cidadão português tem, hoje, muitas chances de lhe penhorarem bens, sem aviso prévio).




Mas a carta continuava, admitindo que eu podia querer( mas achei que neste "queria", havia uma grande dose de dúvida), pagar voluntáriamente e, para isso ensinava-me um caminho tortuoso,cheio de vários passos, na internet, através do qual eu iria, finalmente, saber porque devia, quanto devia, sendo-me também fornecida uma chave para pagar no multibanco. Terminava acarta com cordiais saudações, que achei algo deslocadas. Mas lá fui para a internet, onde segui, rigorosa e cuidadosamente as instruções epistolares. Mas vim de lá desiludido porquanto o "site" não era dísponível. Tentei novamente umas horas depois e,mais tarde , por volta da meia-noite, mas a indisponibilidade continuava, assim se mantendo, no dia seguinte dee manhã. Resolvi ir à repartição de Finanças de onde provinha a misteriosa missiva estatal, que era a do meu domicílio fiscal, bastante perto. Ali, fui recebido por um jovem funcionário que leu atentamente a carta, ouviu as minhas explicações e se foi sentar frente ao computador, de onde regressou pouco depois, desapontado e esclarecendo que tambem não tinha acesso e aconselhava-me a ir a Odivelas. Estranhei, pois se eu era dali e se dali tinha saído a misteriosa carta. Sim,eesclareceu ele, mas o assunto era de bOdivelas e ,não sendo possível aceder pela internet,o melhor era lá ir. Aí, perdi a paciencia e pedi o livro de reclamações, o que deixou o funcionário em pânico. Expliquei-lhe: - Isto não tem nada a ver consigo, que me atendeu bem e fez o que podia.Agora o governo que passa a vida a engrolar-nos com a revolução tecnológica e, no fim, acaba tudo na mesma, ou seja, ir lá e meter-se na fila- esse merece uma reclamação. O funcionário pareceu concordar, baixou a voz e , com ar conspirativo, deu-me um número de telefone, dizendo:-telefone para este , que lá resolvem o assunto. Mas devia estar a enfiar-me o barrete para eu não reclamar, porque devia estar cansado de saber que , naquele telefone nunca tinham resolvido problema nenhum. Voltei para casa e, de lá, liguei: estive 15 minutos, contados pelo relógio, a ouvir Mozart e, ao fim deste tempo, apareceu uma voz estúpida, metálica, gravada a dizer o seguinte:-Desculpe, mas o tráfego é tanto que provávelmente não podemos atende-lo no tempo desejado.




Fiquei a pensar o que seria para aquelas bestas o tempo desejado,eles que não conseguiam por o aviso antes de despejar 15 minutos de mústca de que muito gosto, mas que não queria ouvir naquela altura. A expressão que me saiu como resposta à minha própria pergunta foi o habitual e oporturno P. Q. P E,no dia seguinte, lá saí de Lisboa a caminho de um concelho limitrofe





Nos tempos que correm andar 50 Km num carro que gaste 10 l. aos 100 Km., é pagar pelo menos €6 de imposto na gasolina.Antes de partir tentei de novo o computador e ( Oh espanto ), desta vez acedi ao site.Todo contente segui religiosamente as indicações da carta das finanças e,ao fim de algum tempo obtive uma mensagem que rezava assim: -O processo está em estudo!

Fiquei pasmado, então aquelas bestas ameaçavam-me com penhoras num processo que ainda estavam a estudar?Bem, decididamente tinha que lá ir; e parti !



Não sei se os ilustres contribuintes que leiam este blog sabem que em concelhos limítrofes de Lisboa os serviços de finanças fecham para almoço.Cheguei5 minutos depois de ter fechado e como não queria perder a minha vez ( era o primeiro ) e as senhas de aten dimento estavam do outro lado da porta, sen tei-me nas escadas e aguardei, sonolento que a hora de almoço passasse.Mesmo assim não evitei que um jovem, ás 14 h. em ponto galgasse a escada a quatro e quatro, quási arrombasse a porta, sacasse primeiro do que eu a senha de atendimento, e ma exibisse com orgulho do seu valoroso feito. Mas não tem mal Havia duas funcionárias e aque me calhou era mais bonita que a dele. Mais bonita e tinha a escola toda. Por escola entenda-se os cursos de formação em psicologia barata com umas horas de marketing e outras de enrolanço de clientes, com que as nossas autoridades gastam os dinheiros de Bruxelas .Mas esta era simpática, além de bonita. Tinha uns olhos castanhos grandes e brilhantes sobre os quais fazia ritmadamente descair umas pálpebras bem tratadas e prolongadas por umas pestanas longas e rimeladas enquanto dos seus lábios bem desenhados e apenas entreabertos saia um "posso ser útil nalguma coisa", baixo mas bem audível e que soava como o AMADO MIO, cantado pela Rita Hayworth. Es tendi-lhe a carta das finanças e ela pôs um semblante profissional, leu-a atentamente, manipulou o computador e disse-me isto é uma pequena importancia de juros e custas cde umprocesso e eu respondi-passe as guias para ir pagar.Então ela decidiu entrar na fase da intimidade telenovelesca, isto para evitar que quando ela me dissesse o que ainda tinha para me dizer, eu disparatasse. Então, sorriu levemente, pôs um ar gaiato e disse-me: sabe,neste prédio em que mora, tenho uma amiga , Paula, mas já não a vejo ha muito tempo. Sabe dela? Respondi-lhe: - Não, sei que casou e mudou-se, mas não sei para onde foi. Ahn!, respondeu fingindo surpresa. Claro que no meu prédio, não ha nenhuma Paula que se tenha casado e ido embora.Assim,ficámo-nos os dois, mentindo um ao outro, até que ela entendeu jogar a cartada final, que havia muito escondera na manga. Olhou para o écran do computador, primeiro séria, depois num ligeiro enrugar das comissuras dos lábios tendendo para o sorriso que de pressa ganhou a cara toda e se transformou numa gargalhada cristalina que acabou num grito: Oh! Felismina.
A Felismina era uma colega mais velha que, do outro canto da sala, acorreu ao chamamento.
Então a jovem funcionária começou a palrar: - Diz-lá, ó Felismina, este senhor foi notificado, pagou dentro dos 30 dias, portanto não deve nada Confirmas?
A Felismina olhou de novo e confirmou.
Então a jovem funcionária, provavelmente com vínculo precário, virou-se para mim, abriu-se num sorriso estudado e explicou:
- O Sr. não deve nada. De facto tinha aqui debitados uns juros e custas, mas como notificado do principal, pagou em 30 dias, a lei manda que os juros e custas fiquem sem efeito. Já cancelei o processo. Depois, baixinho, mentiu: - Cumprimentos à Paula, se a vir. E desculpe.
Pedira desculpe e bem devia. Eu andara 5 dias à procura de um processo que não devia existir
Perdera tempo e dinheiro.A burocracia aumentara, em relação a tempos anteriores, tudo porque o software informático não conseguira traduzir o legislado ( e quantas vezes mais isto vai acontecer em ofensa ao estado de direito).
A e-governança parece ser uma balela propagandista e a função pública começa a parecer-se com um contido bordel.
Oxalá me engane, mas para ter a certeza que me engano preciso que todos a quem coisas destas acontençam, protestem , alto e bom som.

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