Tuesday, September 28, 2010

Andam todos os oposicionistas de direita a dar como exemplo do combate à crise, a Irlanda, Só que omitem que com as medidas de combate à crise (deminuíção de vencimentos,eliminação de organismos estatais,cortes radicais nas despesas públicas), a Irlanda entrou de novo em recessão e o seu PIB deminuiu de novo no último trimestre e, provávelmente continuará a deminuir no próximo.
Isto não quer dizer que não haja despesas sumptuárias a cortar que o governo não se atreve a cortar porque tem medo de atingir os seus asseclas. Mas se o PSD estivesse no governo faria o mesmo e é por isso que preconiza os cortes na despesa mas não se atreve a indicar onde devem ser os cortes, porque tal iria desmobilizar grande parte dos seus potenciais votantes. E todos, PS,PSD e governo estão a contar com crise politica em Maio próximo e eleições a seguir.Tudo isto aumentado pelo facto de o PR tambem estar em campanha eleitoral.Mas se as coisas pioram muito é bem capaz de se não recandidatar. Já terão pensado nisso as cassandras de mau agoiro que pululam nos nossos meios de comunicação social?
Cortar nas despesas? Há muito por onde cortar, assim tenham coragem. O primeiro e fundamental corte é no número de deputados que devia ser já reduzido para um número não superior a 150.Grande parte dos deputados não anda a fazer nada na AR e a democracia representativa não sairia minimamente prejudicada. Outro corte fundamental é nos fringe benefits(beneficios adicionais) dos dirigentes de cargos públicos e dos politicos. Tais senhores não gastam um centimo nem com comida nem com transportes e, muitos, nem com vestir. Ora quem ganha o que eles ganham pode muito bem suportar essas despesas básicas do ser humano, que os outros cidadãos suportam dos seus salários Portanto é de cortar nas ajudas de custos, nas deslocações em carro próprio (substitui-las pelo pagamento da gasolina necessária ao transporte se o funcionário quiser deslocar-se em carro próprio), reduzir drásticamente as deslocações em serviço e privilegar as deslocações em transportes públicos e responsabilizssar pelos excessos os dirigentes máximos dos serviços. Controlar ao máximo as deslocações ao estrangeiro. A maior parte dos investigadores da função pública passa a vida no estrageiro, em conferencias e reuniões que não têm nenhum interesse para o país. Há pouco tempo uma investigadora , que passa a vida em viagens à custa do erário público, escreveu um livro. Julgam que era um livro cientifico? Não, era um livro de impressões turisticas.
Acabar de vez com as direcções de serviços, de departamentos e outras chefias sem objecto, isto é, em que os respectivos chefes não têm nem serviços nem departamentos nem outras estruturas para exercer as suas funçóes de comando, mas que continuam a receber como se fossem chefes.
Aqui há anos, sem nimguem perceber porquê, já que este governo apostava na investigação e nas novas tecnologias, foi declarada a intenção de extinguir o INETI e os seus funcionários e património distribuidos atrabiliária e estúpidamente por outros organismos e serviços. Mas como o INETI nunca mais foi extinto, os seus chefes continuam a receber como chefes embora não chefiem coisa nenhuma.
Esta extinção do INETI tem muito que se lhe diga. Como tinha um vultuoso património, principalmente o seu campus e o polo tecnológico do Lumiar, todos à beira de Telheiras e com dezenas de hectares, todo ele foi transferido, por artes mágicas de um decreto-lei, para o IAPMEI, um instituto público que não faz nada, a não ser servir de saco azul ao Ministério da Indústria e que viu assim o seu património engordar sem nada pagar, em muitos milhões de euros.
Claro que os seus dirigentes, avençados, co contratantes e outros beneficiários das públicas larguezas ganham todos balúrdios em vencimentos e negócios, mas o Estado não ganha nada, antes perde. Na verdade os muito laboratórios que viviam em casa própria r portanto nada tinham que pagar, passam agora a ter que pagar ao IAPMEI uma renda mensal de que o erário público não
tira nenhuma vantagem. Pura especulação entre organismos públicos.
O LNEG,novo instituto público que absorveu a maioria dos funcionários do Ineti,apesar de pouco fazer ou nada, comprou agora sete carros topo de gama para uso do seu Conselho Directivo (não foram só as Águas de Portugal que se meteram nestes espaventos).
No polo Tecnológico do Lumiar está instalada a hoje célebre DELPHI, que paga um preço ridiculo pelos espaços que ocupa. Foi o ministro de então quem impôs tal preço, já que a entidade que geria o Polo o não queria aceitar, com o argumento do grande interesse para o país na entrada em Portugal dessa "grande" multinacional. Agora a DELPHI liquida os seus negócios, despede trabalhadores, causa prejuízos a Portugal, mas dali não sai nem nimguem lhe rescinde o contrato.
O LNEG, depois de espantar os juristas que recebeu do INETI, contratou duas sociedades de advogados para aconselhamento juridico (os serviços de contencioso são pagos à peça e á parte), com chorudas avenças. Mas os juristas do INETI foram para outros serviços e o Estado nada poupou com a operação.
Por outro lado é evidente que qualquer instituto público, que deve ter uma função especializada e especifica, deve ter uma assessoria juridica especializada na matéria das suas funções;e a herdada pelo Lneg era das melhores da função pública portuguesa. É por não terem tal noção que os organismos públicos contratam tão mal, E é por os apoios externos serem tambem eles deficiente e muitos assuntos não terem acompanhamenyo interno capaz, que Portugal está sempre a perder acções nos tribunais internacionais. Em todo o mundo se dá a maior importancia a um acompanhamento juridico correcto das questões afectas aos organismos públicos, excepto neste nosso malfadado estado de direito.

Wednesday, September 8, 2010

O meu amigo Matateu

Também fiz desporto. Aliás, em Lourenço Marques, o mais difícil era os jovens não fazerem desporto. Eu queria jogar futebol e, se possível no Desportivo, como guardardes. Mas, nesse tempo, o Desportivo tinha o Luís Nunes e o Pedro Santos, o Ferroviário tinha o Helder e o Costa Pereira ( sim, o do Benfica ), o Sporting, que para mim estava fora de causa por ser benfiquista e do rival local, o Desportivo, tinha o Evaristo e o Pegado e para as crises, o Juca (sim, o do Sporting de Portugal ), que, além de um fabuloso médio, era também um óptimo guardaredes. Todos excelentes, dos quais se destacou mais o Costa Pereira. Nos clubes pequenos havia também guardaredes fora de série, como o Fernando Vaz (hoje grande médico em Maputo), outro muito bom, no 1º de Maio, cujo nome me esquece. De modo que se eu queria jogar nas honras tinha que ir jogar no Malhangalene, na altura com falta de guarda-redes, que era um clube simpático, de bairro, que disputava alegremente os últimos lugares da tabela, com os clubes mais fracos. Mas como não havia 2ª divisão e portanto, não havia risco de descida, ninguém se preocupava muito com isso.
O Malhangalene tinha um grave senão, que só descobri muito depois de lá ter começado a jogar: os estatutos estabeleciam que era um clube só para brancos. Quando descobri fui ter com o presidente do clube, disse-lhe que aquilo não podia ser e que eu não continuaria a jogar num clube declaradamente racista. O homem disse-me que aquilo tinha sido uma estupidez mas que ele ia promover a alteração dos estatutos; e assim fez
Assim aconteceu que eu lá estava, nas balizas do Malhangalene, sofrendo golos do Veiga, do Laje, do Rebelo, do Coluna (sim, esse ), do Eusébio (também ), do Vicente e daquele génio da bola, então a amanhecer, chamado Matateu.
Ele jogava no 1º de Maio (camisolas vermelhas ), clube do meio da tabela mas que às vezes disputava os últimos lugares com os mais fracos, outras os primeiros lugares com os melhores. De modo que os jogos com o 1º de Maio eram importantes para todos os clubes. O Matateu era um jogador inteligentíssimo, de uma finta fulgurante, uma colocação espantosa e um remate poderoso. Dele sofri muitos golos, com orgulho o digo, mas também foi a remates dele que fiz algumas das melhores defesas da minha vida de que já ninguém se lembra, mas que eu nunca esqueci.
Eu, melhor, o Malhangalene, tinhamos um grande defesa central. Era o Zé Gomes. Atleta de primeira água, era alto e tinha um fisico portentoso, com duas pernas enormes, musculadas e fortes. Tinha, ainda uma profissão que o obrigava a estar sempre em forma: era guarda-fios dos serviços de electricidade, encarregado de reparar as avarias da rede eléctrica, o que, com a tecnologia da época, implicava subir os pau-de-fios como os apanha-cocos sobem aos coqueiros.
O Zé Gomes tinha uma estratégia anti-Matateu, que umas vezes funcionava, outras não. Quando o Matateu corria para a baliza, podia fazer as fintas que quisesse, que o Zé Gomes plantava-se na frente dele, enorme, imóvel, braços abertos e uma perna levantada em paralelo ao chão. Isto obrigava o Matateu a dar uma grande volta e a perder angulo de remate, mas, inteligente como era, depressa encontrou o antídoto: passava a bola por debaixo da perna levantada do Zé e ele passava pelo outro lado, aparecendo sozinho e de bola dominada, frente ao guarda-redes. O Zé Gomes tentou logo contrariar a técnica do Matateu e começou a treinar-se em baixar rapidamente a perna levantada e levantar a outra. Isto dava origem a inúmeros choques: se o Zé levantava a perna quando o Matateu ia a passar era livre ou grande penalidade; se a perna já estava levantada e era o Matateu quem, no seu afã, chocava com ela, não era falta mas ele aparecia-me a rojar pelo chão, por um lado, enquanto a bola seguia por outro. O chão pelo qual rojava era, normalmente o do campo do Sporting de Lourenço Marques, sem relva e com um piso que mais parecia lixa, de modo que vinha sempre queixoso e dizia-me; - Ai, este Sr. Zé Gomes, este Sr. Zé Gomes!, e eu respondia-lhe: -Deixa lá que ele não fez isso por mal e já passa! E foi com este tipo de conversa que ficámos amigos.
Por esse tempo, o Benfica fez uma digressão a África, incluindo Moçambique. Os dirigentes do Benfica eram todos do tempo do meu pai, em Benfica, de modo que naturalmente passaram a frequentar o restaurante de meu pai, comendo os melhores camarões do mundo (os de Moçambique) e lembrando a juventude comum e o Benfica do Lázaro e do Vitor Silva, do Gaspar Pinto e do Chico Ferreira. Numa das vezes eu estava lá e meu pai apresentou-me os senhores. Como a conversa caísse no futebol e apercebendo-se eles que eu jogava, logo me perguntaram se eu achava que algum dos jogadores a actuarem em Lourenço Marques podia interessar ao Benfica. Eu indiquei -lhes logo alí, dois: o Laje e o Matateu. Mas fui-lhes dizendo que embora fossem dois jogadores excepcionais, de igual valia embora de características diferentes, era melhor não pensarem muito no Laje porque ele namorava uma bela laurentina, por quem tinha uma paixão tórrida, a qual não podia nem ouvir falar em sair da terra dela. Eles foram, pelo menos, ver o Matateu, mas parece que não gostaram; o que, diga-se de passagem, foi estranho, porque mesmo quando o Matateu estava em dia não, o que acontece a todos, qualquer leigo em futebol via que estava alí um grande jogador. Os dirigentes do Benfica é que deviam pertencer àquela estirpe de dirigentes nacionais, cheios de ignorância e empáfia, que despedem mourinhos entre dois whysques. Foi assim que o Matateu não veio para o Benfica, quando ainda não havia concorrência; mas uma pérola futebolistica daquelas não fica escondida muito tempo e depressa o Sporting e o Belenenses o descobriram e disputaram. Foi o Belenenses que, felizmente para os benfiquistas ganhou a corrida, e o Matateu estreou-se num jogo particular contra o Porto, no estádio nacional. Nessa altura já eu estava em Lisboa, tirando o meu curso, e , embora o meu Benfica não jogasse, tinha de ver a estreia do meu amigo Matateu. Lá fui cedo para o estádio, paguei o meu bilhete e ainda consegui, graças a um simpático dirigente do clube de Belém, dar um abraço e um estímulo ao meu amigo. Depois fui para o meu lugar nas bancadas e, por acaso, caí no meio de um grupo de adeptos do belenenses que discutiam a possível estreia do “ preto” que uns opinavam ser muito bom, outros diziam não prestar para nada e a maioria mostrava não o conhecer de todo.
Contive-me durante algum tempo, mas a certa altura decidi intervir e lá expliquei àqueles azuis embasbacados que o seu clube tinha feito a aquisição do século. Quiseram saber quem eu era e , quando lhes disse, que conhecia bem o Matateu mas tinha jogado contra ele e , como guarda-redes, tinha “engolido” muitos golos marcados por ele, que estava alí não porque fosse do Belenenses ou do Porto, mas porque queria ver jogar o Matateu; que eu era benfiquista de alma e coração e que a minha pena era ele não ter vindo para o Benfica este discurso, deixou-os curiosos. O jogo começou pouco depois. Nessa altura a grande figura da equipa do Porto era o Virgilio, jogador correcto e de alta qualidade que mercê de uma grande exibição contra a Itália, era conhecido pela alcunha do “leão de Génova”. Foi ele encarregado de marcar o “preto” e o “preto” passava por ele como se ele não estivesse ali. Eram dribles, eram bolas por debaixo das pernas, eram mudanças de direcção e de velocidade que deixavam o Virgilio pregado ao solo, a tal ponto que a certa altura e fora dos seus hábitos, perdeu a cabeça e enfiou uma estalada ao Matateu. Este, com o complexo do colonisado, não reagiu e encolheu-se , para evitar apanhar mais; o árbitro, como era um amistoso , de inicio de época, fez vista grossa e teve que vir o Feliciano (uma das torres de Belém) a correr , lá do seu lugar dar um abanão ao Virgilio, para salvar a honra do convento.

Nesse jogo o Matateu não meteu nenhum golo, mas deu de bandeja a outro avançado a bola com que marcou o golo da vitória do belenenses e fez um grande jogo. Os belenenses à minha volta estavam felizes e olhavam-me com consideração por eu lhes ter antecipado a excelência do jogador. Gostaria de ter visto a cara deles, quando uma semana depois, já para o campeonato, o Belenenses ganhou por 4 ou 5 ao Sporting, todos ou quási todos os golos do Matateu.
Das duas vezes fui ver o Matateu, não os clubes que não eram o meu, mas de ambas as vezes saí com o peito cheio de orgulho moçambicano, orgulho que, por razões futebolistas, só voltei a sentir cerca de uma década mais tarde, quando já exercia a profissão de advogado em L.M. e me desloquei à Europa. Tive de ir a um banco, em Paris, descontar um cheque para o que exibi o passaporte, que na capa dizia Moçambique. Então o funcionário bancário olhou o passaporte,sorriu e exclamou:
-Tiens! – le Mozambique, le pays d’ Eusébio!
Assim, graças à magia do futebol, a mais de 14000 Km. de distancia , um francês, por tradição alheio á geografia, conhecia Moçambique.

Wednesday, September 1, 2010

OS TRÊS JULGAMENTOS

O fim da guerra em Moçambique, apesar da recusa de Salazar em aceitar “os ventos da história”, trouxe profundas modificações politicas que afectaram a vida pacata de uma sociedade colonial, estratificada em camadas sociais bem distintas e facilmente identificáveis: os indígenas, reconhecíveis pela cor da pele, e os colonos. Superintendendo em tudo isto estava o aparelho colonial que via nas colónias o campo guardado, onde todas as actividades, fossem económicas, culturais ou sociais estavam sob o seu controlo.
Para se criar um cine clube em Lourenço Marques foi necessário por, inicialmente, à sua frente um homem do regime, o arquitecto Soeiro, todavia um espírito liberal e um apaixonado pelo cinema, cujo critério de escolha de filmes e de organização dos programas era mais amplo que os dos simpatizantes comunistas que, como de costume se perfilavam para controlar a organização, aproveitando-se do espírito democrático dos outros interessados e da solidariedade contra o regime, que nessa altura nos unia a todos. Note-se que entre os tais simpatizantes ou “compagnons de route “ havia verdadeiros espíritos de eleição que em muito contribuíram para o sucesso e desenvolvimento do cine clube que se transformou no mais importante de todos ( talvez pedindo meças com o do Porto) os que funcionavam no espaço sob administração portuguesa. O sr. Morais, o Jorge Pais, o Rui Baltazar e o Navarro,eram os mais destacados de um grupo a quem se ficou a dever a importância cultural do cine clube e a sua expansão que lhe aumentava a força e o prestigio, de tal modo que as entidades públicas, apesar de não lhes faltar vontade de acabar com aquele “cancro” cultural, não se atreviam, a não ser por via censórica, a meter-se com ele. O grupo acima referido tinha todavia um defeito: um mau sentido prático da vida. Quando assumiam, em bloco, com consentimento e apoio dos democratas que neles votavam, a direcção do cine-clube, começavam a fazer conferencias e debates, a que atribuíam grande valor mobilizador das massas ( compareciam meia dúzia de gatos, quáse todos lendo pela mesma cartilha) e descuravam as sessões. Eu bem lhes dizia que sem sessões não havia cine clube, porque os associados pelos 20 escudos mensais da quota queriam pelo menos, ver 3 filmes e diferentes dos programados pelos cinemas. O resultado era que as direcções deles acabavam sem dinheiro e sem filmes para exibir; depois elegiam-me a mim, para me passar a batata quente e para ver se resolvia o problema. Eu, todavia, fazia-me sempre acompanhar pelo Jorge Pais e pelo Morais, com cuja colaboração, indispensável, se podia sempre contar para safar o cine-clube.
De uma das vezes em que tal situação aconteceu, o cine-clube estava reduzido a uma centena de carolas que pagavam quotas, havia 3 meses que não dava sessões e não havia dinheiro para mandar cantar um cego. Lá reunimos e encontrámos duas soluções que talvez…talvez, resolvessem o problema. Uma era ir falar com o proprietário do cinema Gil Vicente, para ver se arranjávamos rapidamente uma sessão. Este era um homem que vivia do cinema, mas era também um apaixonado por ele e que via com bons olhos a existência do cine-clube que não considerava um concorrente mas antes uma entidade estimuladora do gosto pelo cinemaO pai dele, Manuel Rodrigues , tinha sido pioneiro da exibição comercial de cinema em Moçambique. Ele tinha um gosto apurado pelo cinema e distinguia muito bem um bom filme de um mau filme e um filme com sucesso comercial de outro que, embora bom, o não teria. Mas, dessa vez, recebeu-nos muito bem mas foi-nos dizendo que, de momento, não tinha nada em carteira que nos servisse e nos pudesse dispensar. De repente, porém, bateu com a palma da mão na testa e exclamou: Esperem, tenho aí um filme que é muito bom, mas que não vou exibir porque não dá para uma sessão, com uma assistência de meia dúzia. Vou devolve-lo, mas se o quiserem, têm que o exibir ainda esta semana,
Tratava-se dos 400 Golpes do Truffaut. Na altura, a “nouvelle vague” só era conhecida de meia dúzia de moçambicanos que liam revistas estranjeiras, mas esses eram nossos associados. Aceitámos logo a proposta e ele cedeu-nos um sábado de tarde, que era uma ocasião óptima. Mexemos todos os cordelinhos para anunciar a sessão nos jornais diários, publicámos artigos sobre o Truffault e a nouvelle vague e referencias ao filme e mandámos uma circular a todos os associados, sublinhando que era a única oportunidade de verem, em Moçambique, aquele filme que já tinha um lugar na história do cinema. No dia da exibição os 1100 lugares do Gil Vicente estavam esgotados e ainda havia umas dezenas de pessoas em pé ou sentadas nas escadas do balcão. No fim da sessão o proprietário do cinema, César Rodrigues veio ter comigo e disse-me: se fosse eu a levar o filme, tinha cá 20 ou 30 pessoas e não dava para o petróleo. Vocês, enchem-me a casa!
É certo, respondi eu, mas agora já pode levar todo o Truffault que vier aí, porque vai ter casa cheia.
Sorriu-se, mas levou a sério o que eu lhe disse, porque foi no Gil Vicente que vi o Truffault quási todo, incluindo esse incomparável Beijos Roubados, uma das mais fabulosas comédias da história do cinema. Só não levou o Jules e Jim, mas a história deste filme em Moçambique contá-la-ei noutra ocasião.
Com a sessão dos 400 Golpes, o cine clube arrebitou, mas era preciso mais um golpe para criar confiança nos associados e voltarmos aos 1600 a pagar quotas; era preciso avançarmos rapidamente para a 2ª alternativa da nossa estratégia,
Por esses tempos encontrava-se em Lourenço Marques o Zeca Afonso, já no auge da sua carreira, Fui falar com ele, amigos, que éramos, contei-lhe das desgraças do cineciube e pedi-lhe que preenchesse metade de uma sessão do cineclube, À borla, claro estava, mas disso nem se falou, porque era óbvio. Disse logo que sim, sem por condições e marcou-se a data.
A outra metade do programa era preenchida com um filme alemão, fornecido pelo consulado daquele país, do qual não tínhamos grandes referencias, mas já legendado em português e que se chamava, se a memória me não falha “ Wir Wunderkinder”, Era um filme espantoso que tratava do renascer da especulação imobiliária na Alemanha Ocidental do pós-guerra de 1939/45, As manobras e corrupção dos especuladores eram denunciadas por um jornalista que, em consequência, era perseguido, sofria atentados e era objecto de tentativas de corrupção que sempre rejeitava , O filme acaba com uma cena em que os especuladores vão visitar o jornalista num andar elevado de um prédio . ainda em construção para tentar convence-lo a não publicar um artigo que os vai prejudicar, Sobem, para isso, num elevador que funciona, Perante a recusa do jornalista saem desvairados ,jurando vinganças, e enfiam na primeira porta de elevador que encontram; mas, atrás desta não há elevador, só buraco e eles estatelam-se dezenas de pisos abaixo, definitivamente mortos, Um filme destes, com este final, depois de uma sessão com o Zeca Afonso onde se cantou a Grândola e os Vampiros acabou como só podia acabar: uma sala cheia, a abarrotar que já antes tinha aplaudido freneticamente o Zeca, rompeu numa generalizada salva de palmas, demonstrando que era gente pacifica mas detestando prepotências e atentados à liberdade.
A sessão foi um sucesso; a sala estava cheia e entornava pelas costuras. O cineclube estabeleceu que cada associado devia pagar 3 quotas atrasadas. Muitos pagaram o ano inteiro só para verem e ouvirem o Zeca, Este foi aplaudido de pé, no fim de cada canção e obrigado a voltar ao palco e a cantar de novo várias vezes. Houve quem propusesse que continuasse o Zeca e não se exibisse o filme( mas depois gostaram dele ), O cineclube libertou~se da miséria e poude continuar com as suas missões que não eram apenas exibir filmes, mas também elaborar programas de qualidade, publicar uma revista ( a OBJECTIVA ), impulsionar o cinema amador e organizar concursos, promover sessões de cinema nos subúrbios, para crianças africanas que nunca tinham visto cinema e que deliravam com o Charlot, o Buster Keaton, o Bucha e Estica, as quais eram cada vez mais concorridas e para as quais se preparava o salto de fazer sessões especiais para crianças nos cinemas da cidade de betão.Este era o sonho do Sr Morais que, quási todos os fins de semana, se deslocava para os subúrbios, com uma velha máquina de 16 mm. às costas, para dar às crianças negras, mistas, amarelas ou brancas uma lição de democracia e de bom cinema.
Era um fervilhar cultural que se desenvolvia em Moçambique, apesar da censura, da policia politica, da prepotência fascisante de muitos poderes públicos, contra os quais lutavam o cineclube, o” Teatro de Amadores de Lourenço Marques”(TALM), com, entre outros, o Mário Barradas a encenar, o Núcleo de Arte, a Sociedade de Estudos, o Itinerário, a Voz de Moçambique, a Tribuna, por vezes O Brado Africano, a Associação dos Naturais e a Associação Africana (apesar das perseguições policiais), o Bispo da Beira, D. Soares de Resende e, depois, D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula-Em tudo isto trabalhavam,gratuitamente, intelectuais, curiosos interessados, todos unidos na luta pelo desenvolvimento de uma cultura moçambicana, para eles necessário porque, fossem quais fossem as suas convicções politicas uma certeza era comum a todos eles: Moçambique não podia, por muito mais tempo, continuar a ser uma colónia.